
O equívoco em ‘’beber rótulos’’ e o célebre Julgamento de Paris

“Não beba o rótulo” é uma expressão usada há anos no jargão da degustação – e entre os amantes do vinho – para indicar a necessidade de não ser influenciado pelo brasão de uma garrafa: nem de forma positiva, deixando-se intimidar pela fama mundial de um produtor, nem de forma negativa, subestimando a qualidade de um rótulo desconhecido.
É um exercício muito menos simples do que se poderia pensar. Foi demonstrado por alguns pesquisadores que a percepção de um vinho muda dependendo da expectativa: a resposta sensorial e conseqüente elaboração mental são de fato diferentes se bebemos o mesmo vinho sabendo antes o rótulo ou ignorando do que vinho se trata.
Por isso foram introduzidas as degustações às cegas, justamente para zerar este poder de condicionamento dos rótulos.
A mais famosa degustação às cegas da história completa 40 anos nestes dias: o Julgamento de Paris, um pequeno evento que teve um impacto enorme, abalando fortemente o mundo do vinho.
Em 1976, o hoje conceituado critico britânico Steven Spurrier era apenas um comerciante de vinhos, dono de uma pequena loja em Paris. Depois de várias viagens aos EUA (ele era casado com uma norte-americana) provando vinhos californianos, decidiu organizar uma prova às cegas em que uns desconhecidos rótulos americanos desafiavam grandes vinhos franceses. Convidou como júri alguns dos melhores degustadores da época. Nomes ilustres como Pierre Brejoux (inspetor geral do INAO -Institut National d’Appellation d’Origine), Odette Kahn (da prestigiada La Revue du Vin de France), Michel Dovaz (decano dos degustadores franceses), a lenda viva Aubert de Villaine (dono do mítico Domaine de la Romanée Conti), entre outros.
A mais famosa degustação às cegas da história completa 40 anos nestes dias: o Julgamento de Paris
Pois bem, como o Spurrier intuiu, os ‘’anônimos’’ vinhos americanos derrotaram os rivais franceses mais badalados e caros. Tanto na categoria de brancos quanto na de tintos venceram dois vinhos californianos, causando constrangimento no setor vinícola francês e mostrando os avanços da enologia do Novo Mundo. Isto lançou os vinhos americanos no Olimpo dos grandes, com conseqüente enorme sucesso comercial e subida dos preços para níveis exorbitantes.
O painel de experts franceses daquele porte acabou colocando o branco Château Montelena e o tinto Cabernet Sauvignon Stag’s Leap Wine Cellars, ambos de safra 1973, no primeiro lugar das respectivas categorias, a frente de monstros sagrados como Château Mouton-Rotschild, Haut-Brion, Montrose, Leoville Las Cases.

No dia 24 de maio de 1976, em Paris, ocorreu um pequeno evento que é hoje considerado a degustação mais importante do século XX: o Julgamento de Paris
O resultado foi longamente contestado, sobretudo em função do método adotado: o cálculo final foi apenas feito somando as notas dos vinho e dividindo pelo número de jurados (o que é estatisticamente insignificante) sem levar em conta a real classificação dos vinhos por cada jurado; os vinhos eram de safras diferentes; os americanos eram mais prontos para beber já os franceses precisariam de mais tempo para serem apreciados; e de 10 vinhos em prova, 6 eram do Estados Unidos e 4 os franceses, o que acabou deslocando o centro da avaliação para o lado americano, já apenas para meros motivos de cálculo da probabilidade. Inclusive o evento aconteceu numa sala emprestada de um hotel onde os convidados tiveram até que se apressar nas avaliações por conta de um casamento que viria em seguida.
Ademais é sabido e comprovado que a avaliação sensorial de qualquer individuo – incluindo dos grandes degustadores – é sujeito á variações que dependem de múltiplos fatores, como o ambiente, o humor, o clima, os alimentos que se ingeriram (antes e durante) etc. Portanto é extremamente provável que se a mesma prova tivesse acontecido no dia seguinte, em outro horário, em outro lugar, aqueles mesmos degustadores teriam chegado a resultados diferentes.
Mas por outro lado a experiência serviu para provar que não se deve ter preconceitos (nem para o bem nem para o mal) e para mostrar ao mundo que o trono de rainha da enologia mundial ocupado pela França, também pode ser colocado em discussão.
P.S. a famosa degustação ganhou uma versão cinematográfica no filme de 2008 intitulado em português ‘’O Julgamento de Paris’’ (titulo original: ‘’Bottle Shock’’).

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